Sunday, September 04, 2011

A Ditadura da Perfeição Feminina

Falo a vocês, altezas, princesas encantadas,

Mocinhas das novelas de tevê, namoradinhas e esposinhas do cinema,

Heroínas dos romances do século XIX,

Queridinhas das Américas,

Falo a vocês que acreditam

Que as mulheres são melhores do que os homens,

E que têm que ser perfeitas para provar essa tese.

Escuto vocês dizendo,

Somos mais sensíveis, ouvimos o outro,

Somos mais comportadas,

Cuidamos das crianças, dos velhos e dos doentes,


Não lutamos pelo poder

Mulher se envolve menos em corrupção.


Menina é mais calma do que menino, mais fácil de lidar,

A mulher não é agressiva como o homem,


A mulher pensa no planeta,

A mulher constrói e não destrói.


Quantas mulheres declaram por aí, somos mais éticas!


Quando exigem os seus direitos, quantas vezes não lançam mão desses argumentos?


Os direitos não decorrem das supostas virtudes; resultam da condição humana.


A auto-idealização da mulher, como ser eticamente superior ao homem, ou, pior, que deva sê-lo, nada mais é do que um discurso opressor. Um discurso que se rende ao machismo, universo no qual observam-se dois extremos: a demonização da mulher, de um lado, e sua idealização, de outro.


A demonização da mulher dispensa maiores comentários. Trata-se de olhar a mulher como ser menos inteligente, mais fraco, fútil, vaidoso, menos ético.


A idealização da mulher, por outro lado, coloca-a num pedestal: do coração, da família, da moral, da religião. A mulher é a mãe abnegada, que coloca os filhos em primeiro lugar; a esposa que se contenta em ser a "grande mulher por trás de um grande homem"; a esposa, noiva ou namorada fiel, de um homem só e de preferência, de fala macia; se solteira, deve ser casta, viver dentro de casa, e jamais cortejar um homem; a santa imaculada, a sacerdotisa virginal das religiões.

Tanto a demonização quanto a idealização da mulher têm o mesmo resultado prático: acarretar à mulher maiores deveres e impor-lhe "mais extensas proibições", como diria Pontes de Miranda.

A visão da mulher como ser inferior em inteligência e espírito, no físico, fútil, tem sido utilizada para negar direitos à mulher. Exemplos disso são o capítulo "A Educação de Sofia", no Emílio de Jean-Jacques Rousseau, um clássico do antifeminismo; o argumento dos opositores ao sufrágio feminino, que diziam, se as mulheres votarem, escutarão a opinião de suas costureiras (preconceito de sexo e de classe social); e, mais recentemente, decisões do STF, que em pleno início da década de 1980 julgavam constitucional a exclusão das mulheres de concursos para delegado de polícia!
Recentemente, ouvi, estupefata, colega que considero muito, dizer que entendia ser direito de um restaurante impedir a entrada de mulher "desacompanhada" em suas dependências, a fim de coibir a "prostituição". Ou seja, mulher que sai só é vista como prostituta por presunção.

Por outro lado, a idealização da mulher impõe-lhe muitas obrigações, que se resumem em duas palavras: perfeição e sacrifício.

A fim de corresponder ao seu estereótipo idealizado, a mulher tem que ser a melhor filha, esposa, mãe, avó, tia; melhor profissional, chefe, colega, subordinada; melhor estudante; mãe perfeita e que coloca os filhos e a família acima de si mesma; e tem que ser bonita, meiga, bem-vestida, educada, generosa, sensível, solidária, esforçada, mas não competitiva. Não pode querer tomar o namorado, noivo, esposo, de outra; não pode tomar a iniciativa da conquista (isso, nem pensar!); não pode ser agressiva e nem falar num tom imperativo; não pode ser individualista, colocar-se a si mesma em primeiro lugar, nem brincando; dizer que gosta de dinheiro, é feio, coisa de interesseira; lutar pelo poder, ai, ai, ai! Se a mulher de poder comete um deslize ético igualzinho ao cometido por outros homens, o julgamento é muito mais intransigente e severo; como se a norma de regência do caso concreto estatuísse, a mulher não está no poder para ser corrupta, mas para ser melhor do que os homens.


Que a vida das mulheres ainda é mais difícil do que a dos homens, ninguém nega; que são as mulheres que, quase sempre, cuidam das crianças, dos velhos e doentes, também; basta olharmos os números das Nações Unidas para a mulher: são 2/3, dois terços, dos pobres do mundo. E são a quase totalidade de quem faz, de graça trabalhos de enorme valor social: educar e cuidar. A condição feminina, sem dúvida, impacta no psiquismo feminino: quem sofre determinadas experiências é por elas transformado. Agora, pretender que todas as mulheres sejam sensíveis, cuidadoras, altruístas, enfim, que se comportem de acordo com os decretos não-escritos da Perfeição Feminina, e tratar com maior severidade os comportamentos "desviantes" do padrão, nada mais é do que opressão machista. É insistir na imposição da condição feminina, que se opõe, subjugada, à condição humana.

Conhecemos o princípio, os direitos das mulheres também são direitos humanos. Assim, as mulheres têm direitos porque são seres humanos, e não seres perfeitos ou virtuosos, de acordo com idealizações opressoras. E não deixam de ter direitos, acaso desviem-se do padrão de perfeição e virtude que delas ainda se espera.

A mulher tem o direito de ser tão livre quanto o homem, e este, tão livre quanto a mulher.











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